O sector da saúde em Moçambique, à semelhança doutros sectores vitais para o desempenho do Estado, tem enfrentado diversas dificuldades para o seu funcionamento, com destaque para a falta de material médico-cirúrgico, medicamentos para os utentes e outros insumos essenciais para o funcionamento normal das unidades sanitárias.

A melhoria das condições de trabalho e o aumento salarial também sempre constituíram pontos centrais na agenda dos profissionais de saúde. No entanto, aquando da aprovação e implementação da Tabela Salarial Única (TSU), nos finais de 2022, os descontentamentos associados à remuneração  desta classe agudizaram-se devido a irregularidades detectadas.

“Entre vários aspectos, exigimos enquadramento condigno de médicos especialistas e de clínica geral no contexto da TSU, tendo-se em conta o cumprimento do estatuto do médico na Administração Pública, a revisão das horas extras, assim como a reavaliação dos subsídios de renda para habitação, subsídio de localização e de exclusividade, em cerca de 40%”, afirmara, na altura, um documento tornado público pela Associação Médica de Moçambique (AMM).

Dentro do ano em curso, igualmente, em exigência de aumento salarial, a Associação dos Profissionais de Saúde Unidos e Solidários de Moçambique (APSUSM) deu início a jornadas de paralisação de actividades. As mesmas paralisações, entretanto, foram suspensas por duas vezes, sendo que da última, dentro de um intervalo de 60 dias, houve um acordo entre esta agremiação e o Governo, através do Ministério da Saúde (MISAU).

Assim sendo, no contexto da suspensão das greves por parte dos profissionais da saúde, o Observatório do Cidadão para Saúde (OCS) levou a cabo um trabalho de monitoria das unidades sanitárias para perceber até que ponto os acordos entre as partes estão a ser cumpridos, uma vez que circulam relatos de mau atendimento, longas filas de espera, desrespeito dos direitos do utente (no contexto da Carta dos Direitos e Deveres do Doente [CDDD]).

Não tomando como ponto de pesquisa os serviços de saúde no seu todo, focámo-nos nos serviços de assistência pré-natal e maternidade, em algumas unidades sanitárias da cidade de Maputo, capital moçambicana.  

A priori, escalámos o Centro de Saúde de Malhangalene. Como simples utentes, instalámo-nos na fila de atendimento para nos inteirarmos sobre o comportamento dos profissionais de saúde e sobre o funcionamento dos serviços de consulta pré-natal. Depois de assistirmos a longas filas de e à impaciência estampada nas faces dos pacientes, tentámos perceber o que estava por detrás da morosidade no atendimento.

Uma senhora em estado de gestação, dirigindo-se à nossa equipa de reportagem na condição de anonimato, manifestou o seu descontentamento para com os serviços, tomando-os como “ineficientes e morosos.”

“Há muita morosidade”, disse a paciente, adiantando que “há poucos profissionais para assistir os pacientes. A paciente pode chegar às sete e ser atendida às 12 ou 13 horas para um serviço básico de consultas rotineiras.”

De acordo com a fonte, um profissional de saúde chega a estar para 50 gestantes “e, mesmo assim, prioriza-se quem paga subornos.”

Gestantes obrigadas a consultar clínicas privadas para ecografia

A paciente revelou ainda que os enfermeiros obrigam as gestantes a fazer ecografia em clínicas privadas para que possam pagar taxas elevadas que, posteriormente, são partilhadas entre a enfermeira que emite o guia e a clínica que afectua a ecografia.    

Sem mencionar nomes das enfermeiras ou clínicas envolvidas no esquema, a paciente afirma que “fui obrigada a recorrer a uma clínica privada, onde paguei 1500 meticais para fazer ecografia. Ao invés de me darem um guia para um hospital público, onde poderia fazer o mesmo exame a custo zero.”

“Acredito que o enfermeiro ganha uma parte do dinheiro que pagamos na clínica privada. Somos obrigados a fazê-lo, sem isso somos sujeitos a mau atendimento nas fases subsequentes das consultas pré-natais, até mesmo no momento do parto ou consulta pós-natal”, explicou.

Uma outra paciente confirmou a existência desta prática, denominando-a diabólica e, por isso, havendo necessidade de a mesma ser abolida de uma vez por todas.

“Há uma ligeira vontade de se privatizar o sector público de saúde”, sublinhou.        

No que diz respeito à limpeza da unidade sanitária, entretanto, as pacientes foram unânimes em afirmar que está tudo em ordem.      

“Quanto ao estado de limpeza, não há muito que reclamar”, afirmaram, adiantando que há  muita morosidade para o atendimento na farmácia.

“As pessoas têm de marcar fila mesmo quando se encontram num estado debilitado, a contorcerem-se nos bancos”, disse uma paciente.

“Os farmacêuticos são bastante lentos, ficam a conversar e, quando procedem com o atendimento, apenas fornecem iboprofen ou paracetamol”, acrescentou uma outra.   

Cenário Sombrio no  Centro de Saúde de Xipamanine

Em seguida, deslocámo-nos para o Centro de Saúde de Xipamanine, onde deparámo-nos com um cenário deveras sombrio. Acabava de escurecer. Passavam por aí dezoito horas. Fizemo-nos ao departamento da maternidade e eis ambiente que se apresenta: salas totalmente escuras, lanternas de celulares acesas, uma enfermeira (tida como chefe, embora não aparentasse) e uma servente. Encontrámos na fila de espera várias pessoas, entre acompanhantes e gestantes aos gritos perante contrações de parto.

É dia 23 de Junho, sexta-feira. Disfarçados em pacientes, questionámos o porquê de tudo estar às escuras e a servente responde-nos nos seguintes termos “não temos energia.” O que aconteceu, será que o credelec ficou zerado? Ela responde-nos que não, “não se trata de disso. Ficámos sem energia porque houve um acidente, estava-se a tentar queimar uma cobra e o fogo atingiu um dos cabos elétricos.”  Nesse momento, questionámo-nos sobre a proveniência da tal cobra. Fomos informados que os serviços voltarão à normalidade quando a equipa da Eletricidade de Moçambique (EDM) tiver reparado os danos.  

Enfiámo-nos nas conversas dos pacientes que já se encontravam ali há muito tempo, desde à treze horas. ficámos a saber que apenas uma enfermeira está de serviço e esta única nem sequer está a trabalhar, está simplesmente a manejar o celular e a conversar com a sua colega servente. Escutámo-las ambas aos risos, ao passo que doutro lado gritavam as mulheres por conta das contrações.

“Seria bom se não restabelecessem a corrente elétrica. Faria o turno desta noite a dormir”, escutamos a enfermeira a dizer, uma senhora de altura mediana e arrogante na sua forma de tratar os pacientes. Aliás, enquanto pacientes (disfarçados) fomos também vítimas dos maus tratos desta senhora, quando perguntámos o motivo  por detrás da ausência doutros profissionais, como é que uma unidade sanitária desta magnitude estava a funcionar apenas com duas pessoas, que nem sequer estavam a atender as gestantes?

Mau atendimento como contínua manifestação da greve dos profissionais de saúde

Mesmo quando se restabeleceu a corrente, uma hora e trinta minutos depois, não vimos nada a mudar. As gestantes foram apenas admitidas para os quartos, sem nenhum exame ou observação. Entregues à sua sorte, deitavam-se no desespero da dor, sem céus ou chão. As que já tinham dado parto, nos quartos encontravam-se silenciosas.

Abordámos uma acompanhante que acabava de deixar uma gestante na sala de parto. Com as faces visivelmente desesperadas disse-nos “não tenho esperança que o trabalho de parto corra bem. Só duas pessoas a trabalharem nesta maternidade, cobraram-me dinheiro para que ela estivesse em boas mãos. Vejo que a enfermeira chefe não está interessada em trabalhar, isto deve ser continuação da greve.”      

A constatação que tirámos deste cenário reside no argumento de que a greve dos profissionais de saúde contínua, porém de forma silenciosa. Não faz sentido que se esteja a trabalhar desta forma, como se meramente se estivesse a fazer um favor aos utentes, como se os centros hospitalares fossem propriedade privada de alguém. Como OCS, exigimos que as entidades responsáveis pela fiscalização das unidades sanitárias pronunciem-se, levando a cabo um trabalho de monitoria para apurar os factos aqui narrados, de modo que as pessoas envolvidas na deturpação dos serviços sejam devidamente responsabilizadas. Não podemos continuar a ter um Sistema Nacional de Saúde (SNS) que funciona de acordo com regras de determinadas pessoas. 

Hospital Geral de Mavalane agindo à sangue frio

Nos serviços de maternidade, no Hospital Geral de Mavalane, os problemas são de toda a natureza, desde maus tratos, morosidade no atendimento e desrespeito da Carta dos Direitos e Deveres dos Doentes. Estas questões levam-nos a robustecer o argumento de que a greve manifesta-se silenciosamente, não faz sentido que um hospital desta magnitude – composto por especialistas nacionais e internacionais  – esteja a funcionar a “meio gás.”

Alguns pacientes entrevistados pelo OCS afirmaram ter permanecido na fila de espera por mais de oito horas. As gestantes sentavam-se longas horas nos bancos, sem saber se seriam admitidas para o trabalho de parto ou se seriam dispensadas para as suas residências até que estivessem devidamente maduras para entrar no serviço de parto. Os gritos das gestantes eram desoladores, mas, por outro lado, avistavam-se profissionais andando de um lugar para o outro, como se nenhum trabalho tivessem, alguns manejavam celulares e outros conversavam simplesmente.

“Os médicos e outros profissionais de saúde continuam em greve. Mas agora mudaram de estratégia. Simplesmente não atendem as pessoas ou atendem-nas de forma muito lenta. Está tudo lento e entediante”, disse um homem dos seus trinta e poucos anos, que acompanhava a esposa

De acordo com este homem, “a morosidade talvez tenha que ver com os sucessivos atrasos salariais. O governo tem sido bastante moroso no pagamento de salários. Hoje, por exemplo, os funcionários do Estado estão a trabalhar, mas ainda não obtiveram os seus salários. Isso também pode estar a contribuir para o mau atendimento.”

Na enfermaria, onde se encontram as mulheres que já deram parto, ouvimos uma mulher que afirma ter sido vítima da violência verbal e psicológica das parteiras.          

“Os maus tratos são óbvios. Ameaçaram submeter-me à cesariana se não tirasse o bebé até às dezoito horas no máximo. Os enfermeiros estavam sem mais tempo para continuar a assistir-me, queriam sair mais cedo”, disse a recém-mãe.

“Há  falta de aconselhamento psicológico”, acrescentou.

Ao longo da sua explanação, a nossa fonte narrou um episódio que envolve uma paciente que deu parto a um bebé sem vida.

“Ela simplesmente foi informada que o bebé estava morto. Foi tudo à sangue frio, sem conversa, sem eufemismo, sem nada”, afirmou.

A fonte revelou ainda que depois do parto, na enfermagem, não há nenhuma refeição para as pacientes, nem sequer uma chávena de chá ou um prato de sopa.

“A sopa e o chá apenas existem quando se está na sala de parto. O que significa que, sem uma refeição proveniente de casa, as pacientes permanecem famintas após terem estado na sala de parto”, sublinhou.    

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