
Vários utentes do Sistema Nacional de Saúde (SNS), ouvidos pelo Observatório Cidadão para Saúde (OCS), no âmbito da prorrogação da greve dos Médicos por mais 21 dias, sentem-se abandonados pelos profissionais envolvidos na greve, assim como consideram-se traídos pelo Governo, que já deveria ter apresentado argumentos plausíveis para a resolução dos impasses ainda existentes.
A prorrogação da greve, que consiste na paralisação de actividades em todas unidades sanitárias, arrancou no dia 01 de Agosto corrente, após ter durado por 21 dias durante o mês de Julho, abrangendo quase todos os serviços.
A reacção dos utentes surge dias depois de a Associação Médica de Moçambique (AMM) ter decidido prolongar as suas reivindicações por alegadamente ainda persistirem irregularidades no enquadramento destes profissionais na nova Tabela Salarial Única (TSU).
“A classe médica decidiu por unanimidade prorrogar a greve por mais 21 dias, ou seja, a greve vai continuar até ao dia 21 de Agosto”, disse o presidente da AMM, Milton Tatia, aquando do anúncio da prorrogação da greve na sexta-feira última, em Maputo, após uma reunião da associação.
Os médicos argumentam ainda que uma das causas da continuidade da greve deve-se à uma alegada existência de um documento enviado à classe dando conta da revisão do regulamento do estatuto dos médicos que “visa reduzir e eliminar os seus direitos”.
“Se o Governo, através do Ministério da Saúde, quiser agir de boa-fé que apresente provas, que envie para a Associação um documento a explicar os pagamentos para nós também podermos acalmar os nossos colegas”, acrescentou Tatia.
Em todo o país, cerca de dois mil médicos aderiram à greve, pelo facto de ainda não se ter chegado a nenhum consenso com o Governo.
À entrada do Hospital Central de Maputo (o maior hospital em Moçambique), o OCS abordou utentes que estavam à espera da assistência do médico. No local, alguns pacientes fizeram menção à exaustão dos profissionais de saúde que se encontravam a trabalhar para garantir os serviços mínimos.
“Estamos aqui, no maior hospital do país, mas é possível observar que os profissionais não estão a trabalhar a cem por cento, parecem estar exaustos. Fomos abandonados por aqueles que juraram salvar as nossas vidas, não faz sentido que esta greve se prolongue por mais tempo”, disse um paciente em anonimato para evitar quaisquer constrangimentos.
Uma senhora aparentemente cansada e bastante doentia, disse à nossa equipa que “a greve dos médicos é uma violação dos nossos direitos como utentes e moçambicanos. O governo e a organização dos médicos devem encontrar soluções o mais rápido possível, porque assim já não está a dar.”
“Eu, por exemplo, tenho vindo ao Hospital Central para resolver o meu problema de saúde, mas não tenho tido sucesso porque os médicos estão em falta”, acrescentou a paciente.
“Vidas Humanas estão a ser sacrificadas”
Para Pedro Sambo, paciente que se encontrava na fila de espera no Hospital Geral de Mavalave, a greve surgiu para sacrificar a vida dos moçambicanos, e não faz sentido que passados os primeiros 21 dias não se tenha alcançado consenso entre as partes.
“O governo puxa as coisas para o seu lado e os médicos, por sua vez, puxam-nas para o seu lado. Sabemos que por detrás das negociações envolve-se dinheiro, mas nenhum valor monetário ou estatuto é mais importante que a vida das pessoas. Fica óbvio que se está a sacrificar vidas humanas”, afirmou.
Sambo alega que o atendimento tem sido muito moroso e as filas são longas e muitas vezes falta um determinado médico para assistir os pacientes.
“Estamos aqui há mais de duas horas, mas não sabemos o que se passa. Ninguém aparece para nos ajudar, mesmo sabendo que estamos doentes. Morreremos aqui, em busca de ajuda médica, estamos a ser assassinados silenciosamente”, afirmou o paciente.
Um outro paciente, que se recusou a revelar o nome, acusou o Governo de não se importar com os moçambicanos “porque se se importasse, teria arranjado soluções imediatas para acabar com a greve. O que se pode esperar de um país sem médicos nos hospitais?”
“O nosso sistema de saúde tem funcionado mal mesmo tendo todos os médios a exercer as suas funções. Agora, com esta maldita greve, as cosias pioraram, ficaram três vezes mais difíceis. Não há ninguém para proteger os nossos direitos, o Estado devia ser processado por tudo isto”, argumentou o paciente, pronunciando-se numa voz enfurecida e colérica.
Troca de Acusações entre as Partes
De acordo com o presidente da AMM, houve avanços sobre a redução do subsídio de exclusividade, que passou de 40 para 5 por cento, do subsídio de risco de 30 para 5 por cento e do subsídio de turno, que caiu de 30 para 5 por cento.
Por seu turno, o Ministério da Saúde (MISAU) afirma ter resolvido o problema de falta de pagamento de salários e de enquadramento na TSU, embora os médicos defendam a persistência de alguns problemas.
Desde a aprovação e implementação da Tabela Salarial Única (TSU) nos finais de 2022 – associada a outros factores, tais como exiguidade salarial, falta de material de trabalho e medicamentos para os utentes – as greves no sector da saúde têm sido habituais, manifestando-se de forma intermitente.
No entanto, para um paciente do Centro de Saúde Malhangalene “a troca de acusações entre as partes já não tem graça. Precisamos de ajuda, não há como o país funcionar devidamente com o sistema de saúde danificado e paralisado”.
Um outro paciente, também na fila de espera, disse que o Governo e os médicos deveriam encontrar rapidamente uma solução para acabar com a greve “porque desta forma sacrifica-se a vida das pessoas. Pode parecer que não, mas há muita gente que está a perder a vida por causa desta greve.”
Perigo por detrás da extinção do Estatuto dos Médicos
Não obstante o alvoroço por detrás da remuneração dos médicos, o governo pretende introduzir um novo estatuto do médico, que prevê o corte de subsídios.
O novo estatuto do médico sugere igualmente a eliminação dos subsídios de risco e de exclusividade, assim como a revisão do cálculo das horas extraordinárias e do subsídio de diuturnidade.
Para a Associação Médica, através de um comunicado tornado público ainda esta semana, a introdução do novo estatuto constitui uma violação dos direitos do médico e retira os incentivos para que este exerça as suas funções.
“É uma proposta que tem um altíssimo grau de insensibilidade por parte do Governo e, mais do que isso, julgamos que é um grande insulto, não só aos médicos, mas também à história do nosso país, pois o estatuto em vigor foi aprovado depois de duas grandes greves que tivemos em 2013, e estão a tentar anulá-lo antes mesmo de garantir a sua implementação cabal”, disse Napoleão Viola, porta-voz da AMM.
Perante a situação, os médicos, através de um comunicado tornado público ainda nesta semana, ameaçam processar o governo moçambicano por desonrar a classe médica.
“Moçambique assumiu vários compromissos regonais e internacionais relativamente à promoção e protecção da saúde com a consequente valorização dos médicos e desenvolvimento do sector da saúde. No entanto, a forma tanto dolosa como negligente com que se está a destrur o Serviço Nacional de Saúde e a marginalizar a classe médica dá espaço à AMM para interpelar as instituições relevantes no sector da saúde a nível da União Africana e das Nações Unidas, incluindo os respectivos sistemas de direitos humanos, bem como os parceiros internacionais de Moçambique na área da saúde para intervirem no caso em apreço e chamar o Governo de Moçambique à consciência”, lê-se no documento.
O documento afirm ainda que “pela gravidade da situação, a AMM também pretende levar a cabo um trabalho de avaliação dos sucessivos governos no sector da saúde, para a atribuição do prémio ao pior Governo que geriu este sector e daí dar espaço para as devidas investigações sobre os motivos que levaram a tal conduta destrutiva para as devidas acções de responsabiização.”
Nesta ordem de problemas que assolam o sistema de saúde moçambicano e os seus utentes, o OCS reitera o seu apelo ao bom senso entre as partes. Neste braço de ferro, os moçambicanos, principalmente os mais desfavorecidos (os vivem com menos de um dólar por dia, habitando em zonas remotas e de difícil acesso), são as principais vítimas. O governo deve colocar, na sua agenda, o interesse público acima de quaisquer interesses, tendo em conta que os médicos constituem entidades vitais para o funcionamento condigno do Estado.
Por sua vez, os médicos, assim como toda a classe de profissionais de saúde, devem evitar que os utentes sejam sacrificados. Ou seja, estes profissionais devem fazer valer o seu juramento porque, acima de qualquer questão, devem salvar vidas.