- Introdução
As discussões em torno do desempenho do sector de saúde em Moçambique têm sido cada vez mais intensas, na medida em que se vai registando um crescimento demográfico, que em parte coloca pressiona Sistema Nacional de Saúde. Vários aspectos têm sido levantados, no âmbito da concepção de hospitais e centros de saúde, tendo em conta a distribuição geográfica e densidade populacional.
Sendo assim, não se conseguiria escrever a história da evolução do sector da saúde em Moçambique sem que se destacasse o capítulo referente ao financiamento do sector de saúde, dado que, em todas as fases e ciclos do desenvolvimento do Sistema Nacional de Saúde, sempre foi de relevo e tem acompanhado as frequentes variações circunstanciais e estruturais do sector.
O Sector de saúde é em grande medida financiado pelo sector externo, tanto na realização de despesas de investimento, assim como para algumas despesas em bens e serviços correntes. Dependendo em “larga escala” de doações e empréstimos de parceiros internacionais, não obstante o facto de o capital externo, sob forma de investimento directo ou empréstimos ao sector de saúde, desempenhar diversos papéis, desde os primórdios da economia moçambicana. Assim sendo, há necessidade de se promover um uso racional e sustentável dos recursos provenientes destas fontes de financiamento, sob o risco de poderem vir a constituir um ónus na sustentabilidade do seu serviço, em caso de dívida pública e perda de confiança dos parceiros, em caso de doações.
O presente documento apresenta constatações resultantes da análise do grau de desempenho do sector da saúde na provisão dos serviços de saúde sexual e reprodutiva (SSR). Para o efeito, a pesquisa apresenta a tendência da despesa do sector ao longo do tempo em comparação com os compromissos internacionais, com a inflação, com a evolução demográfica e mostra os efeitos destas tendências nos indicadores de saúde seleccionados de SSR.
- O CONTEXTO DA PROVISÃO DOS SERVIÇOS DE SAÚDE EM MOÇAMBIQUE
Baixo acesso a serviços de saúde: De 2014/15 a 2019/20, apesar de, em termos globais, o acesso aos serviços de saúde ter aumentado em cerca de 1,9pp, o acesso a estes serviços na área rural, onde vive cerca de 67% da população, diminuiu em 9pp, ou seja, de 64,4% para 55,4%. De forma contrária, na área urbana, o acesso aos serviços de saúde aumentou de 76,7%, em 2014/15, para 97,9%, em 2019/20. Este cenário demonstra a desproporcionalidade do acesso à saúde em Moçambique entre áreas urbanas e rurais, com prejuízo das áreas rurais.
Falta de profissionais de saúde: O rácio de profissionais de saúde de Moçambique (1,7 por 1000 hab.) é 0,6 abaixo do recomendado pela OMS, sendo composto principalmente por técnicos de saúde e enfermeiros que em juntos correspondem a cerca de 95% do efectivo do SNS. Ou seja, o SNS tem um baixo efectivo pessoal qualificado, onde os médicos correspondem apenas a cerca de 5% deste efectivo.
Baixo acesso a equipamentos: por exemplo, o país tem 0.7 camas/1.000 habitantes. Este rácio é cerca de 4 vezes inferior às 3 a 5 camas/1000 habitantes recomendadas pela OMS para fazer face às necessidades de internamento da população.
Mudanças climáticas: Nas últimas três décadas, o país tem sido afectado por eventos climáticos extremos, como secas, inundações e ciclones (PDNA, 2019). Estes eventos têm contribuído para deteriorar o já deficiente sistema de saúde de Moçambique. Por exemplo, em conjunto, os ciclones Idai e Kenneth foram os desastres naturais mais devastadores de que há memoria na história recente do país, quer em termos de impactos humanos e físicos (vide a tabela 1), como em termos da extensão geográfica de áreas afectadas. Por exemplo, O Ciclone Idai afectou 51 distritos em quatro (5) províncias, nomeadamente, Sofala, Manica, Zambézia, Tete e Inhambane.
O Ciclone Idai danificou um total de 94 unidades sanitárias, das quais 4 foram totalmente destruídas e 90 parcialmente. Isto equivale a 14% das infra-estruturas de saúde nas províncias afectadas. Igualmente, houve danificação de equipamentos, móveis, medicamentos essenciais e suprimentos médicos. Por exemplo, na província de Sofala 4 distritos perderam capacidade de realizar cirurgias para salvar vidas (exemplo, a cesariana) devido a destruição total nos blocos operatórios, especialmente no Hospital Central da Beira e no Hospital Rural do Búzi (vide a tabela a seguir).
Tabela 1: Danos Físicos e Humanos dos Ciclones Idai e Kenneth

Fonte: Adaptações do Autor com base em UNICEF (2019)
Saúde Sexual e Reprodutiva: De acordo com o Global Financing Facility (GFF), Moçambique conseguiu reduções substanciais nas taxas de mortalidade materna, de menores de cinco anos e neonatal. Contudo, os progressos têm sido desiguais e limitados para as populações mais pobres nas zonas rurais.
No geral, apesar do rácio nacional de mortalidade materna intra-hospitalar estar dentro do recomendado pela OMS, 80/100.000 NV, a Cidade de Maputo apresenta um rácio quase duas vezes superior ao recomendado pela OMS, com 145/100.000 NV. Além disso, as províncias de Gaza e Sofala, estão na linha vermelha com 82/100.000 NV e 80/100.000 NV, respectivamente. Ademais, a mortalidade neonatal/1000 nados vivos é de 28,5, ou seja, acima da média global, 18/1000 nados vidos. Igualmente, Moçambique apresenta indicadores alarmantes de HIV, sendo que o país faz parte dos 30 países de via rápida com 13,2% de prevalência. Pelo que, são notificados, em média, mais de 120.000 casos de novas infecções por ano.
Finanças Públicas: Apesar de o país ter se comprometido em alocar pelo menos 15% do seu orçamento ao sector da saúde, nos últimos 10 anos (2013 a 2022), o país alocou em média apenas 8,9%. Igualmente, nos últimos 5 anos (2018 a 2022), a maior parte das despesas do sector de saúde, 79%, foi alocado a despesas de funcionamento, com apenas 21% sendo aplicado em despesas de investimento. O país também regista uma forte dependência externa para o financiamento das despesas de investimento. De facto, nos últimos 5 anos, cerca de 79% das despesas de investimento foram financiadas por fontes externas.
- CONSTATAÇÕES
Balanço do Orçamento para o Sector da Saúde vs Compromissos Sectoriais
Do ponto de vista do valor alocado, de 2010 a 2022, o Governo nunca alocou os 15% do Orçamento do Estado (OE) para o sector, de saúde. De facto, no período em análise, o Governo alocou para saúde, em média 9% do OE, sendo que nos últimos 5 anos (2018 a 2022) esta média é ainda menor, 8,5%. O pico do peso de alocações orçamentais para o sector de saúde, no período em análise, foi registado em 2013 com 11,5% do OE.
Do ponto de vista da despesa executada, no geral, o peso de execução é relativamente menor que o peso da alocação, com destaque para os anos entre 2016 e 2019, significando que para além das intenções de alocação orçamental (média de 9% de 2010 a 2022) estarem abaixo da Declaração de Abuja (15%), as mesmas não se materializam na prática, pelo que a média do peso da despesa efectivamente despendida no sector da saúde é de 8,7%.
A diferença negativa do peso da despesa executada em relação ao peso inicialmente previsto permite dizer-se que, em caso de redução da disponibilidade de recursos previstos para um determinado ano, a dotação orçamental do sector da saúde é uma das sacrificadas, do mesmo modo que, em caso de aumento da despesa pública total, o sector da saúde é um dos que menos se beneficia.
Gráfico 1: Peso do Sector de Saúde vs Declaração de Abuja (2010 a 2021)

Fonte: Cálculos dos autores com base na CGE (2018 a 2021), PESOE (2023) e WHO (2010)
Orçamento Alocado ao Sector de Saúde vs Crescimento Demográfico (2010 a 2022)
De acordo com o ODM/ODS, cada país deve aplicar USD 60,00 per capita para garantir o acesso aos serviços de saúde para todos. O gráfico 4 indica que, de 2010 a 2022, Moçambique não chegou a atingir sequer a metade do valor recomendado pelo ODM (USD 60,00), tendo registado o pico em 2013, onde alocou USD 28,69 per capita. Igualmente, a despesa per capita do sector de saúde em Moçambique está abaixo da média de África, USD 32,00. Isto significa que a despesa da saúde não está a acompanhar a tendência de crescimento da população o que pode comprometer a melhoria da prestação de bens e serviços de SSR e HIV/SIDA, por exemplo.
Gráfico 2: Despesa do Sector de Saúde (em US$ per capita)

Fonte: Cálculos do Autor com base na CGE (2010 a 2021), INE (2010 a 2022), BdPESOE (2022) e ODM (2000)
Comparação do Plano e Execução da Despesa
A tabela a 2 indica que, de 2010 a 2022, o governo executou, em média, 87% da das despesas do Sector de Saúde. Sendo que a menor e maior execução registaram-se, em 2017 e 2022, com 77% e 92%, respectivamente. A baixa execução, conjugada com o facto de que o orçamento alocado (9%) está abaixo da Declaração de Abuja (15%) comprometem o objectivo de melhorar progressivamente os serviços prestados pelo SNS no longo prazo.
Descrição | 2010 | 2011 | 2012 | 2013 | 2014 | 2015 | 2016 | 2017 | 2018 | 2019 | 2020 | 2021 | 2022 |
Plano | 10,2 | 10,7 | 17,3 | 22,7 | 18,9 | 20,3 | 25,2 | 23,4 | 27,4 | 26,1 | 34,8 | 34,3 | 43,3 |
Execução | 8,1 | 9,4 | 15,6 | 20,9 | 17,3 | 18,3 | 19,5 | 18,8 | 23,1 | 22,7 | 32,2 | 30,8 | 39,9 |
Execução | 79% | 88% | 90% | 92% | 91% | 90% | 77% | 80% | 84% | 87% | 92% | 90% | 92% |
Efeitos da Execução da Despesa do Sector da Saúde na SSR
Apesar da realização da despesa de HIV ter aumentado quase três vezes de 2019 a 2020, de USD 64,3 Milhões para USD 173,4 Milhões, respectivamente, registou-se uma tendência decrescente tanto em termos nominais como em termos reais nos últimos anos, 2021 e 2022. De facto, a realização da despesa real de HIV em 2022 representa uma redução de mais da metade da despesa de 2020. Esta redução contrasta com o facto de Moçambique apresentar indicadores alarmantes de HIV.
Gráfico 3: Evolução da Realização da Despesas de HIV (2019 a 2022) em USD Milhões

Fonte: Adaptações dos autores com base no REO (2019 a 2020)
Comparação do plano e execução da despesa
Apesar da realização da despesa de dos serviços de SSR ter aumentado, em termos reais, de USD 5,0 Milhões, em 2019, para USD 112,9 Milhões, em 2020, no geral, este aumento não tem se revelado constante ao longo dos anos. Por exemplo, de 2020 para 2021, houve uma redução de USD 11,9 Milhões para USD 7,0 Milhões, ou seja, uma redução de USD 4,9 Milhões. Este cenário afecta a capacidade de provisão de bens e serviços de SSR ao longo do tempo.
Gráfico 4: Evolução da Realização da Despesa de SSR (2019 a 2022) em USD Milhões

Fonte: Adaptações dos autores com base no REO (2019 a 2020)
Grau de Desempenho e Cumprimento das Metas de SSR
Cobertura de novos utentes em consultas de planeamento familiar. De 2019 a 2021, registou-se a redução da cobertura de consultas de planeamento familiar de 41% para 32% a nível nacional, respectivamente.
Cobertura de Partos Institucionais. A cobertura dos partos institucionais manteve-se imutável entre 2019 a 2020, 85%.
Número de mortes Maternas e Rácio de Mortalidade Materna (RMM). De 2019 a 2021, o número de mortes maternas reduziu de 861 para 801, respectivamente. Igualmente, o RMM por 100.000 hab. reduziu de 77 para 65,6, em igual período, respectivamente. Em comparação com os padrões internacionais da OMS (80/100.000 Nados Vivos), a nível nacional, a situação de Moçambique não é preocupante. Contudo, quando se desagrega por província, a Cidade de Maputo apresenta um rácio quase duas vezes superior ao recomendado pela OMS 145/100.000 NV.
Taxa de Cobertura de Crianças HIV+ que receberam TARV. Taxa de Cobertura de Crianças HIV+ que receberam TARV aumentou em 28pp de 2019 a 2022.
Igualmente, a Taxa de Cobertura de Adultos HIV+ que receberam TARV registou um aumento de 33pp, ou seja, de 66%, em 2019, para 94%, em 2022. Contudo, é importante destacar que existe uma desproporcionalidade provincial no que tange a evolução da taxa de cobertura de HIV+ a receberem TARV. De facto, de acordo com o anuário estatístico, de 2019 a 2021, em média, apenas 4 das 11 províncias atingiram 100% das metas deste indicador.
Prevenção Transmissão Vertical (PTV) de mulheres grávidas HIV+. Registou-se um progresso ligeiro de 1.458, de 2019 a 2021.
Tabela 3: Evolução dos Indicadores de SSR (2019 a 2022)
Indicadores | 2019 | 2020 | 2021 | 2022 | Varia. |
Cobertura de novas utentes em consultas de planeamento familiar | 41% | 32% | 32% | S/D | -9% |
Cobertura de Partos Institucionais | 85% | 85% | 89% | 85% | 0% |
Número de Mortes Maternas | 861 | 858 | 801 | S/D | -60 |
Rácio de Mortalidade Materna /100.000 NV | 77 | 75 | 65,6 | S/D | -11,4 |
Taxa de cobertura de adultos HIV+ que receberam TARV | 59% | 69% | 81% | 92% | 33% |
Taxa de cobertura de crianças HIV+ que recebem TARV | 66% | 64% | 79% | 94% | 28% |
Prevenção Transmissão Vertical (PTV) de mulheres grávidas HIV+ | 112.282 | 107.533 | 113.740 | S/D | 1.458 |
- Melhorar a priorização do sector de saúde para pelo menos 15%, em conformidade com o compromisso de Abuja. O sector de saúde pode captar recursos em outros espaços fiscais (seguros de viatura, produtos nocivos, etc.) que criam custos não compensados ao sistema de saúde do sector público;
- Assegurar na execução do orçamento do sector da saúde, no mínimo consiga manter o peso inicialmente previso;
- Aumentar os recursos do sector de saúde, de acordo com a tendência de crescimento da população e os parâmetros necessários para garantir o acesso aos serviços de saúde para todos;
- Assegurar a realização de efectiva da despesa do sector de Saúde, no mínimo nos termos estabelecidos no OE;
- Melhorar a alocação de realização da despesa com acções de prevenção e tratamento do HIV em Moçambique;
- Melhorar a alocação de realização da despesa com acções ligadas a SSR em Moçambique. A acção antecipada do ponto de vista de prevenção (por exemplo, educação sexual aos jovens) pode poupar recursos avultados que seriam alocados ao tratamento de novos casos de HIV/SIDA;
- Reforçar a cobertura de novos utentes em consultas de planeamento familiar em todas províncias, com destaque para a Cidade de Maputo e Províncias de Sofala e Nampula;
- Acelerar os esforços para a cobertura de partos institucionais a fim de alcançar a meta do PQG de 96%;
- Melhorar as acções de combate a Mortalidade Materna, com destaque para a Cidade de Maputo e as províncias de Gaza e Sofala que estão acima do RMM recomendado pela OMS;
- Assegurar o acesso ao TARV em todas províncias do país;
- Continuar a desenvolver acções PTV de mulheres grávidas HIV+.
Leia aqui a Pesquisa Completa: https://www.observatoriodesaude.org/download/analise-do-balanco-do-plano-economico-e-social-na-componente-da-saude-sexual-e-reprodutiva-dos-adolescentes-em-mocambique-2010-2022/