Quando Isabel* apercebeu-se que seria mãe, esperançou que o parto pudesse constituir um dos actos mais felizes da sua vida. Mas entre os golpes no ventre e ameaças, o seu sonho tornou-se pesadelo, marcado por lembranças sombrias que o tempo ainda não se encarregou de apagar.

“Hoje, meses depois conceber, tenho medo de ir ao hospital. Quando penso em ir ao hospital, fico aterrorizada” afirma, enquanto tira o filho do colo para o entregar à prima.

As memórias de agressão, perpetradas pelas enfermeiras do Centro de Saúde de Ndlavela, fazem-na pensar que, “não gostaria de ter outro filho tão cedo. Não entendo como aquelas enfermeiras podem ser tão más, mesmo sendo tão jovens.”

Nesta série de reportagens que Observatório Cidadão para Saúde (OCS) leva a cabo em parceria com a Associação Saber Nascer, a fim de denunciar casos de violência obstétrica em Moçambique, as fontes pedem anonimato por temer represálias. Sendo assim, os nomes aqui presentes são fictícios. 

O serviço de parto, a que Isabel foi submetida, iniciara à madrugada. Horas antes do serviço, as parteiras, com ares arrogantes, avisaram as parturientes para que estivessem preparadas e tivessem as capulanas amarradas”.

“Elas usam este termo para sugerir que as parturientes entrem no serviço de parto já com dinheiro”, explica Isabel.

Ela deitava-se sobre lençóis cheios de sangue ressequido. O sangue não era dela. Certamente de uma outra parturiente que estivera ali dias antes. Tendo notado a presença do sangue, antes do início de serviço de parto, ela tirou da sua pasta uma capulana e estendeu-a por cima.

“Não me sentia confortável e, porque durante as minhas idas ao hospital, antes do parto, as enfermeiras já me maltratavam. Eu fiquei com medo de falar da existência daquele sangue.”

Tratando-se de período nocturno, já imaginava que poucos profissionais de saúde pudessem estar no centro de saúde para assisti-la.

“Às noites, ou na ausência da chefe, as parteiras maltratam as parturientes. Respeitam a chefe médica, que é totalmente contra todas essas práticas, mas infelizmente ela não trabalha à noite”, lamentou.

No meio da noite, enquanto caminhava dentro da maternidade, vieram os primeiros sinais de que a hora do parto chegara. Ela estava em pé, quando a bolsa rebentou-se, molhando-a. Com recurso à mão, apoiou-se à cama e clamou por socorro, mas este era, propositadamente, lento.

Por isso, “eu estava em pé, mas sozinha deitei-me na cama para iniciar o serviço de parto”, contou.

Um das enfermeiras, à distância, lançou o seu impávido olhar à Isabel que se jogara na cama e fazia esforço para tirar o bebé sozinha. “Ela olhou para mim, calma, enquanto eu me contorcia. Aquela era a minha primeira vez e não sabia, então, como proceder”, conta ao OCS, sentada numa casa algures na cidade de Matola.

Enquanto Isabel se contorcia, sozinha na cama, “a enfermeira olhou para mim e perguntou-me quanto é que eu tinha para pagar. E se, de facto, eu tinha amarrado a capulana?”

Na sala da maternidade, outra enfermeira encontrava-se a dormir, num canto. Tinha uma cama no canto da sala. O sono dela era tão profundo que no dia seguinte, ela acordara e perguntara à colega sobre como decorreu o parto.

“Imagina se apenas estivesse ela no serviço de parto? Com o sono que ela teve, então eu poderia ter perdido o meu bebé”, questiona.

Enquanto as dores aumentavam, a enfermeira “olhava para mim. Em momentos como estes, tu não tens como. Elas sabem que estamos psicologicamente e fisicamente abatidas. O que mais queremos neste momento é ter o nosso filho.”

Enquanto Isabel se contorcia, a enfermeira, do outro lado, apenas olhava

“Ela não queria iniciar o parto sem que lhe prometesse algum valor. Uma moça antes de mim pagou 200 meticais. Eu não trazia dinheiro.”

Depois  disso, ela começou a desferir golpes com o antebraço para tirar o bebé

Diante dessa situação, Isabel prometeu pagar 200 meticais à enfermeira, à semelhança da outra parturiente que estava ao seu lado, mas a enfermeira recusou-se. As negociações subiram até aos mil meticais. Só aí “fechámos o negócio. Mas, porque eu não tinha dinheiro ali, disse à enfermeira que o meu marido o traria no dia seguinte.”

Depois de encerrada a “negociação”, ela começou a desferir golpes com o antebraço. Além das dores do parto, causados pelo esforço que devia fazer para tirar o bebé, sentia, por outro lado, “as dores dos golpes da enfermeira. Um tempo depois, eu descobri que ela devia fazer a massagem e não bater em mim.”

“Isto tudo deixou-me traumatizada, mas, de alguma forma, eu já esperava, pois, durante os dias de consulta, aquela enfermeira falava mal comigo.”

No dia seguinte, ao amanhecer, a enfermeira predispôs-se a emprestar o celular à Isabel para que ligasse ao marido, pedindo que ele fosse ao hospital com mil meticais.

 “Ela só estava preocupada com o dinheiro que eu prometera”, acrescenta a fonte.

No mesmo hospital, uma jovem perdeu o filho diante do olhar impávido das enfermeiras. Este tipo de cena pode ser identificado em tantas outras unidades sanitárias, em todo o país. A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera violência obstétrica uma violação contra os Direitos Humanos.

A violência iniciou Antes do dia do parto

Ao oitavo mês, a gravidez da Lúcia começou a apresentar complicações. Sentia dores constantes. Às vezes, ela e o marido deixavam a casa às madrugas para se fazerem ao hospital, acreditando que pudessem ter o filho prematuramente.

Outras vezes, as dores surgiam de dia. Nestes momentos, ela ia sozinha à unidade sanitária de Ndlavela.

Num desses dias, em pleno dia, Lúcia foi agredida por uma dor intensa. Ela recorreu imediatamente ao hospital. Seus passos lentos, originados por dores que lhe invadiam o ventre, obrigavam-na a arrastar os pés.

Chegada ao hospital, a profissional de saúde desatou a gritar “o que vens cá fazer? Devias mais é fica em casa e não cá para dar-nos trabalho”, contou.

Diante desta pergunta, Lúcia calou-se, limitando-se apenas a apresentar o que a levava à unidade sanitária.

“Sabe, isto era frequente em Ndlavela. Naquele dia, simplesmente me calei, mas aquele comentário assustou-me. E ainda me assusta, até hoje”, conta Lúcia.

No dia do parto, Lúcia apenas confirmou as suas suspeitas. O mau atendimento era apenas o prenúncio daquilo que ia acontecer no dia do parto. A frieza das enfermeiras, os olhares insensíveis diante do sofrimento e a preocupação somente com o dinheiro assustaram-na.

“O que mais importa para estas enfermeiras é o dinheiro. Elas só começam a atender-te, e mal, quando prometes dinheiro. Todas as parturientes no hospital de Ndlavela pagam.”

Lúcia tem a certeza de duas coisas “há duas garantias que dou: quando uma mulher vai àquele hospital, é maltratada e é submetida a pagamentos ilícitos.”

Mas quais são as implicações deste tipo de violência?

Camila Fanheiro, Activista da Associação Saber Nascer, diz que são várias as manifestações deste tipo de violência, destacando, entretanto, a violência física e psicológica.

Uma das consequências deste tipo de violência é a ansiedade, depressão pós-parto ou perinatal, e, inclusive, psicoses. No segundo caso, o da violência física, a mulher pode ter problemas uterinos, desenvolver a fístula obstétrica até chegar à mutilação genital, quando os procedimentos “cirúrgicos” do parto não tiverem sido correctos.

Para o tratamento dos transtornos em alusão, exige-se intervenções de diferentes sectores.

“A paciente precisa de uma triagem muito aprofundada para identificar a consequência do problema. Ultrapassada essa fase, fazemos o devido encaminhamento”, esclareceu a activista, acrescentando que “grande parte dos casos exige a intervenção de obstetras, ginecologistas. Contudo, não são raras as vezes em que é necessário um tratamento multidisciplinar”.

Questionada sobre o principal grupo que mais sofre com estes transtornos, Fanheiro responde sem hesitar: “todos” e justifica: “desde que esteja grávida, a mulher pode ser vítima. Para a violência obstétrica, não há classe social, raças nem etnias. Temos mulheres que se queixam de violência obstétrica nas clínicas, assim como algumas que se queixam do mesmo mal nos hospitais públicos.”

Camila Fanheiro explica, sem dar dados numéricos, que este tipo de agressão é cada vez mais comum em Moçambique e ocorrem pelo facto de muitos profissionais não estarem alinhados com as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e os pilares de atendimento obstétrico.

“Apesar de sabermos que é uma realidade, nós ainda não temos evidência. Não temos um estudo claro que mostre a situação real da violência obstétrica”, disse.

Para a activista, este é um passo fundamental numa altura em que o governo parece não prestar atenção ao problema, considerando que o número de queixas “mostra que não temos nenhum órgão no país que lida com este problema. Ainda se leva a questão de forma leviana”.

A violência obstétrica só pode ser ultrapassada com maior investimento, sobretudo investindo-se na formação dos profissionais de saúde, para que saibam lidar humanamente com as pessoas.

Matola entende ainda que a violência pode trazer agitação às mulheres, o que acaba secando o leite “e não pode alimentar o bebé. Lembrem-se que estamos numa sociedade que não olha com bons olhos o aleitamento do bebé através de outros meios externos.”

Em Moçambique, o próprio Estado torna as mulheres vítimas deste mal. Comprovar é simples, basta ver as distâncias que a mulher deve percorrer para ter acesso à saúde.

Aliás, dados produzidos pelo próprio Ministério da Saúde (MISAU) apontam que, até 2014, 62% das mulheres declararam, nos inquéritos, que já tiveram pelo menos um problema para ter acesso aos cuidados de saúde. Um delas é a falta de recursos financeiros exigidos em alguns casos, assim como proibições ligadas aos trajes.

A psicóloga lamenta o facto de ainda não existir em Moçambique uma assistência de psicólogos às mulheres grávidas no momento antes e depois do parto. Segundo, ela este cenário pois agrava a depressão das mulheres.

Para além dos aspectos levantados pela activista, é preciso salientar que é crucial que haja urgentemente um investimento na legislação para se criminalize esta prática que atenta a vida das mulheres.

“Não Podemos Recusar Nem Aceitar A Existência Deste Tipo De Casos” Director do Centro de Saúde

Em conversa com o OCS, o director do Centro de Saúde de Ndlavela, Saíde Omar Momade, disse que desconhece a existência deste tipo de caso na unidade sanitária que dirige, prometendo, entretanto, investigar.

“Não podemos dizer que existe.  Mas também não podemos afirmar que existem casos deste tipo. É uma novidade para nós também.  Temos todas as condições para que estes casos não aconteçam. E criámos vários mecanismos de denúncia, o que significa que a parturiente pode denunciar maus tratos.”

*Os nomes das fontes são fictícios a  pedido das mesmas que temem represálias.

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