
No Hospital Geral de Mavalane, Cidade de Maputo, homens e mulheres são obrigados a fazer as necessidades fisiológicas no mesmo lavabo, após terem ficado numa longa fila de espera – que desrespeita as medidas de distanciamento social, no âmbito de combate à Covid-19.
A fila é longa. Nela encontram-se homens, mulheres e crianças. Os profissionais responsáveis pela limpeza não poupam as palavras, têm sempre um berro para reprimir o utente, ora porque este pisa o chão ainda molhado, ora porque não se sabe colocar correctamente na fila.
Os utentes encurralam-se e não respondem aos berros das senhoras da limpeza, mas murmuram entre si, dizem que não faz sentido formar uma longa bicha para ter acesso ao lavabo. Nos seus olhos é visível o medo, eles não se pronunciam porque temem represálias quando for a vez de serem atendidos pelos senhores enfermeiros ou médicos.
“Se falarmos, seremos mal atendidos”, sussurra uma senhora, no ouvido da companheira ao lado. A senhora que sussurra parece situar-se na casa dos quarenta e cinco anos de idade, tem alguns cabelos grisalhos e os seus olhos denunciam a enfermidade de que padece.
“É só agora que estão a limpar? Já deviam ter feito isso logo de manhã”, continua a sussurrar, fazendo o impossível para que não seja ouvida pelas senhoras que limpam o chão.
A pessoa mais velha, no meio da fila, parece encontrar-se na casa dos setenta. Encontra-se descalço num chão húmido e frio. Não se consegue manter firme com as próprias pernas, depende de um ajudante que lhe agarra o braço para que não caia. A máscara que lhe protege é uma espécie de trapo sujo, com algumas crostas de monco.
“Nem parece estarmos em Covid-19”, afirma uma tipa trémula, que acaba de se encaixar na fila. Ela sente-se fraca, por isso apoia-se à parede desesperadamente, sem se preocupar com o que os funcionários de limpeza dirão.
“Algumas pessoas até parecem cegas”, comenta uma funcionária, sem se dirigir a uma pessoa especificamente.
A nossa equipa, que actua de forma disfarçada, enquadra-se também na fila. Contando da frente para trás, a mesma terá o acesso à sanita depois de vinte e quatro pessoas terem feito as suas necessidades fisiológicas.
São por aí nove horas. Passados alguns minutos, praticamente trinta e cinco, as faxineiras autorizam os utentes a usar os lavabos. Estão disponíveis apenas duas latrinas metálicas em estado deplorável, exibindo excrementos ressequidos e nódoas de urina. Quando questionávamos o porquê de haver apenas duas latrinas para homens e mulheres, as funcionárias dizem que “outras casas de banho estão entupidas e avariadas. É por isso que homens e mulheres fazem as necessidades no mesmo espaço, não há outra alternativa.”
Lá dentro, o cheiro é nauseabundo e perturbador. Nem parece ter-se feito limpeza minutos atrás. As torneiras não despejam água, estão secas há muito tempo e isso já não é novidade para quem sempre frequenta o local.
“Nisto nem funcionam as toneiras”, ouvimos um utente a dizer, a reclamar de si para si.
“Nem parece que estiveram a limpar, isto cheira mal. É tudo negligência do Estado”, afirma um senhor, concluindo “e depois pensam que a Covid-19 vai acabar assim tão facilmente.”
Depois de se fazer as necessidades, não há água para se lavar as mãos, nem para se fazer correr os excrementos. As troneiras que existiam outrora ficaram na memória dos utentes. Agora é cada um por si. Depois das necessidades, tenta-se fingir que está tudo bem.
Ao abandonarmos a zona dos lavabos, apercebemo-nos que, em alguns departamentos, no lugar de mopes e vassouras, alguns faxineiros recorrem a tecidos (capulanas e outros trapos) para limpar o chão, por falta de material de limpeza. Fazem-no com os pés e às pressas.

Há Mais de Dois anos que os Utentes Não Vão à Casa de Banho
Por sua vez, o Centro de Saúde de Mavalane – anexado ao Hospital Geral de Mavalane – apresenta problemas piores e assustadores. Há mais de dois anos que os utentes não têm acesso a uma casa de banho.
Quando eles se vêem apertados, recorrem a um pequeno parque de viaturas. Escondem-se por detrás das viaturas e fazem as suas necessidades. Não é por acaso que o mesmo parque tresanda a fezes e urina, sendo que o chão de areia e capim é palco de seringas, máscaras e algodões usados.
“Isto não está a dar. Somos tratados que nem cães. Há dois anos que esta unidade sanitária não tem casas de banho, as pessoas fazem as necessidades escondidas atrás dos carros”, afirma Hambene Cumbane, supervisor comunitário de saúde, em representação de uma Organização Comunitária de Base, denominada Kuyakana (Construímo-nos Mutuamente, em tradução livre).
Segundo Cumbana, não faz sentido que uma das maiores unidades sanitárias da cidade não tenha casas de banho e torneiras.
“Aqui temos muitos sectores: temos serviços de pediatria, saúde sexual e reprodutiva, HIV, triagem e mais… assistimos a senhoras, jovens e idosos recorrendo ao capim para urinar ou defecar. A falta de casas de banho está associada à falta de água, que já perdura há anos ”, afirma o activista.
De acordo com Cumbane, a casa de banho ajudaria imenso por mais que fosse precária.
“Uma casa de banho de nada minimizaria a situação. É direito do utente gozar de boas condições sanitárias. Não há utente capaz de sair de casa com uma latrina, não existem latrinas portáteis”, defende Hambene, que diariamente se faz a esta unidade sanitária para monitorar os serviços prestados ao utente.
“Há dois ou três anos que as casas de banho estão entupidas. Não tem havido solução, embora a direcção alegue enviar cartas a instâncias superiores para se resolver a problema”, sublinha o supervisor.
Uma senhora grávida, que prefere falar de forma anónima, diz à nossa reportagem que mulheres – no mesmo estado que o seu – disputam uma única latrina imunda e em degradação.
“Olha para mim, com esta barriga toda, tenho que me ajeitar para fazer as coisas numa latrina cansada. É verdade. É horrível o que está a acontecer, disputamos uma latrina para fazer as necessidades”, afirma a senhora, ligeiramente ofegante e com a mão direita sobre a barriga enorme. A seu lado, encontra-se uma adolescente que carrega um bebé nas costas; ela não quer falar, nem mesmo na coindicação de anonimato.

“Quem é a última pessoa?”
Os murmúrios constituem a única forma de contestar. As pessoas queimam com sol e não reclamam porque a mangueira tenta protegê-las. A fila é um comboio enorme, todo o mundo apinhado à espera de uma senha para chegar à consulta.
“Quem é a última pessoa?”, questionam-se uns aos outros e, desesperadamente, põem-se a aceitar a morosidade que caracteriza o processo de atendimento.
Os actuais problemas – que se fazem sentir em todas as unidades sanitárias e hospitais de nível primário em Moçambique – provavelmente se minimizassem se o governo não tivesse deixado de investir cerca de 146.81 mil milhões de meticais no Sistema Nacional de Saúde (SNS), nos últimos dez anos, de acordo com um estudo realizado pelo Observatório Cidadão para Saúde (OCS).