Em Junho de 2020, o Observatório do Cidadão para Saúde (OCS) iniciou a advocacia que pretende colocar o fim às proibições de acesso às unidades sanitárias em função da indumentária.

Na altura, um despacho ministerial anunciou a criação de uma Circular que devia ser afixada em todas as unidades sanitárias em Moçambique. Apesar de a circular ter sido elaborada, continha uma alínea que contradizia o principio a que levou o OCS a advogar. Por isso, o OCS submeteu um novo documento ao MISAU.

A Antropóloga* e pesquisadora  do OCS, Clélia Pondja Liquela, revela que a decisão do MISAU, de revogar a antiga circular, constitui um bom sinal, embora “a carta do MISAU, em resposta ao OCS – sobre a revogação da antiga Circular – não apresente, em forma de anexo, a nova Circular que substitui a de 22 de Outubro de 2020.”

Clélia Pondja Liquela defende que a proibição do acesso às unidades sanitárias em função da indumentária afecta, de forma sistemática, a prestação de serviços de saúde em Moçambique e viola igualmente os direitos plasmados na Constituição da República.

Observatório Cidadão para Saúde (OCS): Qual é o posicionamento do OCS em relação ao anúncio da possível revogação da actual Circular publicada pelo MISAU?

Clélia Pondja Liquela (CPL): O anúncio constitui um ganhoporque a reposta é positivista, mas há um grande desafio que se circunscreve na efectivação da revogação da actual Circular, privilegiando-se o conhecimento da mesma pela maior parte de profissionais de saúde, assim como trabalhadores (guardas, serventes e etc.,) em actividade nas Unidades Sanitárias. Esperávamos que, junto da resposta à carta submetida pelo OCS ao MISAU, viesse, em anexo, o documento da nova Circular. A Direção Nacional de Assistência Médica, a DNAM,  apenas reconheceu que, de facto, a Circular produzida não estava em harmonia com o despacho Ministerial e que, por isso, haveria de ser revogada. Para o nosso espanto, uma vez mais, o documento da nova Circular, contendo as novas diretrizes, não nos foi facultada. Desta feita, suscita-se as seguintes questões: quando será produzida a nova Circular? Quando é que esta passará a ser de domínio público? E qual é a previsão da sua normalização em todas as unidades sanitárias do país?

OCS: Quais são as acções levadas a cabo pelo OCS na mobilização do MISAU para a elaboração e efectivação da nova medida nas US´s a nível nacional? 

CPL: Creio que fizemos o nosso papel, no sentido de chamar atenção ao MISAU e alertar a existência de um lapso no acto da elaboração do conteúdo da Circular. Diante deste todo cenário, esperávamos que o MISAU se tivesse explicado publicamente. Como OCS, o que podemos fazer, é tornar público o documento e dar continuidade às pesquisas de monitoria para perceber se, de facto, esta “nova Circularˮ está sendo partilhada inicialmente a nível interno-administrativo, de modo que a mesma alcance as unidades sanitárias e o seu conteúdo seja devidamente disseminado. O que vamos fazer agora, na verdade, é continuar com o nosso trabalho de monitoria da implementação da Circular, de forma a averiguar, no âmbito das nossas intervenções, a partilha de informação.

OCS: A antiga circular foi partilhada apenas nas redes sociais e não nas vitrinas dos hospitais. Como se explica essa postura e falta de afixação do mesmo documento nas Unidades Sanitárias?

CPL: Cremos que seja mesmo falta de interesse. Este assunto tem sido tratado com pouca relevância. Se soubessem, de facto, ou tivessem consciência de que a indumentária continua sendo uma grande barreira, teriam, por exemplo, adoptado esta nova medida com a mesma flexibilidade que se adoptara a prevenção da COVID-19. Vale referir que o condicionalismo do acesso ao direito à saúde afecta mais as mulheres em detrimento de homens. As mulheres são as principais vítimas deste “sistema”, sofrem com as restrições impostas pelo nosso modelo de sociedade sexista, machista e patriarcal, onde os corpos femininos são vistos e interpretados como potenciais causadores de perturbações que atentam a moralidade e os bons costumes. É importante, aqui, chamar a atenção para a perigosidade destas práticas, pois colocam em risco a vida das mulheres, por estas serem o grupo que mais frequenta as Unidades Sanitárias, quer em busca de cuidados de saúde sexual e reprodutiva, quer no acompanhamento e/ou cuidados dos familiares.

OCS: passo a citar o parágrafo

̋A obrigação do profissional de saúde é atender o utente independentemente da indumentária, não se afasta a possibilidade de este recomendar ao  utente o vestuário adequado para as situações em que a sua ida às unidades sanitárias não constitua uma emergência ̋.  Teria sido este parágrafo da Circular que levou o OCS a remeter uma segunda carta?

 CPL: Inicialmente, escrevemos ao MISAU a solicitar o documento com o conteúdo da Circular. O despacho já havia sido positivo, mas a Circular ainda não havia sido publicada e nem se tinha registo da sua implementação nas US’s a nível do país. Teve-se acesso à Circular em Dezembro de 2020, mas constava que o documento tinha sido elaborado no dia 22 de Outubro do mesmo ano. No terceiro momento, quando fizemos apreciação do documento, havia ali uma questão que atribuía ao provedor de saúde a responsabilidade de desempenhar o papel de controlador da indumentária do utente, podendo este advertir sobre como o utente se deve trajar ao se dirigir àquela instituição. O documento, que devia eliminar a barreira da indumentária para o acesso aos cuidados de saúde, abria aspas que legitimavam que o provedor controlasse a indumentária do utente – o que, neste caso, contrariava a medida do Despacho Ministerial.

É importante que, na nova Circular, seja clarificado que nenhum funcionário na unidade sanitária tem o direito de barrar o acesso do utente àquela instituição. Temos relatos de que o controlo começa, geralmente, à porta da unidade sanitária. A informação deverá ser passada do topo para a base, isto é, esta deve ser feita de forma integral, de tal maneira que a partilha e a massificação da retirada da proibição seja compreendida por todos.

OCS: Como lidar com as crenças sociais e religiosas a serem manifestadas em espaços públicos como estes?

CPL: Creio que esta é uma questão de bom senso. É preciso que se tenha bom senso. Moçambique é um país laico e multicultural. O ser humano precisa de cuidados médicos e os mesmos são assegurados pela Constituição da República de Moçambique. As unidades sanitárias devem ser espaços democráticos. Não cabe, então, ao profissional reger pela moral do utente. A indumentária representa o ser do indivíduo e não cabe ao provedor de saúde julgar quem quer que seja, em função da indumentária e aparência. Porque se for assim, quando formos a qualquer instituição a pública, teremos de preencher uma ficha para saber se somos legíveis ou não para ter acesso aos serviços e às infra-estruturas. Os serviços de saúde são para atender todo e qualquer cidadão.

OCS: Qual é a urgência para este documento, tendo em conta que este processo iniciou em 2020?

CPL: Esta circular já vem tarde, deveria ter sido elaborado em 15 dias ou um mês, depois do Despacho Ministerial. É urgente que a Circular seja produzida e publicada para que todos o possam ter. O desconhecimento da existência da mesma eleva os constrangimentos por parte de muitos utentes e, consequentemente, condiciona a ida do cidadão à unidade sanitária, em busca de cuidados de saúde, bem como afecta igualmente a qualidade dos serviços prestados pelos agentes de saúde em Moçambique. O OCS espera que o documento da Circular seja, de forma flexível, afixado em todas a vitrines de todas as US’s do país.

*Clélia Ponja Liquela  é Dourada em Antropologia. Colabora  como  Pesquisadora  e Gestora de Pesquisa no Observatório Cidadão para Saúde (OCS).

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