CONTEXTUALIZAÇÃO

Observatório do Cidadão para Transparência e Boa Governação no Sector de Saúde – OCS, na sua qualidade de pessoa colectiva de direito privado, sem fins lucrativos, dotada de personalidade jurídica, com autonomia administrativa, financeira e patrimonial, na defesa e protecção dos direitos de saúde, levou a cabo uma pesquisa sobre a questão da indumentária no acesso aos serviços de saúde por parte dos cidadãos, tendo constatado vários aspectos que merecem profunda reflexão no que diz respeito a transformação institucional a nível do sector da saúde para melhor promoção e protecção do direito à saúde no quadro da Constituição da República de Moçambique (CRM).

A saúde é um direito fundamental, em conformidade com o disposto no artigo 89 da Constituição da República de Moçambique (CRM), que determina: “Todos os cidadãos têm o direito à assistência médica e sanitária, nos termos da lei, bem como o dever de promover e defender a saúde pública.”

A PROBLEMÁTICA

Há muitos anos que existe uma prática bastante reiterada, a nível do sector de saúde, sobretudo nos hospitais, unidades sanitárias, postos e centros de saúde, incluindo no acesso às instalações do próprio Ministério da Saúde e suas direcções, que se traduz na proibição de acesso devido ao uso de indumentária ou aparência considerada não apropriada para aceder aos serviços de saúde. Esta prática, que não encontra cobertura dentro do quadro legal em vigor no ordenamento jurídico moçambicano, limita o acesso à saúde , pelo que descrimina com base na indumentária e aparência do utente, cujos grupos mais vulneráveis são as mulheres, jovens e os chamados “rastas” geralmente considerados marginais devido ao estilo de cabelos, e os homossexuais (conhecidos como  “gays”), por conta da orientação sexual e o facto de se vestirem de forma diferente do socialmente espectável para as características do género (masculino ou feminino) do indivíduo.   

A proibição com base na indumentária e aparência tem incidido mais sobre as mulheres, como uma forma do controlo do corpo feminino, o que revela uma tendência para a discriminação da mulher baseada no género, no que diz respeito ao acesso aos serviços de saúde.

ALGUMAS CONSTATAÇÕES

Outrora, eram afixados avisos e anúncios nas vitrinas e portas das entradas das referidas instituições no sentido de dar a conhecer, expressamente, que, nas supramencionadas instituições de saúde, é proibida a entrada de cidadãos com determinada indumentária ou aparência considerada inadequada e/ou imoral na aqueles serviços de saúde.

Actualmente, em virtude de várias acções de advocacia das organizações da sociedade civil e inúmeras queixas dos cidadãos contra a institucionalização da prática de proibição de acesso aos serviços de saúde com base na indumentária ou aparência do utente ou doente, a legalidade da prática em análise, à luz da salvaguarda dos direitos dos utentes dos serviços de saúde no país, é deveras questionada, na medida em que a indumentária ou dress code nas unidades sanitárias, bem como a nível do acesso ao Ministério da Saúde, revela-se, em certa medida, como uma prática que limita o direito de acesso à saúde, ao servir de qualificador sobre qual doente ou utente deve receber atendimento médico.

Na sequência de duas mesas-redondas realizadas nos dias 05 de Março de 2020 e 27 de Maio de 2020, presencialmente e online, respectivamente,  organizadas pelo  OSC no âmbito do projecto “Sou Cidadão”, com determinadas organizações e entidades que trabalham na área da saúde, com vista a reflectir sobre a situação dos direitos e deveres do utente no serviço nacional de saúde. Na ocasião, os participantes foram unânimes em reconhecer que, de facto, existe a prática de limitação do acesso aos serviços de saúde com base na indumentária e aparência do utente em várias unidades sanitárias e demais instituições de saúde, incluindo as instalações do Ministério da Saúde.

Essa proibição com base na indumentária e aparência é praticada pelos guardas, pessoal administrativo e técnico e pessoas da comunidade que barram o acesso dos utentes, uma vez ser avaliada negativamente a indumentária e aparência do utente do serviço de saúde em causa. Na verdade, é o guarda que detêm poder para decidir sobre quem deve entrar ou não nas instituições de saúde, tendo por base a avaliação da indumentária, e o faz segundo as orientações dos seus superiores, e ainda são estes que agem de forma arbitrária na tomada de decisões segundo as convicções e percepções, culturais bem como religiosas, quando lhes convêm.

A prática de proibição com base na indumentária é igualmente levada a cabo por iniciativa própria das referidas entidades institucionais, porque elas próprias acham imoral, contrário à ética pública e aos bons costumes determinadas indumentária e aparência apresentadas. Há, erroneamente, uso de crenças individuais como se de norma institucional se tratasse para valorar a indumentária e aparência dos utentes dos serviços nacionais de saúde. Um dos principais motivos que contribui para a demora no atendimento no sector da saúde está ligado à barreira de acesso à saúde baseada na indumentária e na aparência do utente – o que constitui uma inegável limitação no acesso aos serviços de saúde sem fundamento legal, que põe em causa a vida dos cidadãos por falta de assistência médica em tempo útil.  

Em bom rigor, não há necessidade de se avaliar a indumentária do  doente ou utente para ser observado ou beneficiar de atendimento médico  em sede de tratamento hospitalar ou assistência médica . A equipa médica, em muitas situações, precisa que o paciente (utente) se dispa parcialmente ou totalmente para que melhor possa ser observado. Pelo que há um problema de falta de informação de quem promove e prática da proibição de acesso à saúde com base na indumentária, como defenderam os participantes das mesas-redondas.

BREVE ANÁLISE DO QUADRO LEGAL

É taxativo que a prática do controlo da indumentária e aparência que deve caracterizar o utente ou doentes dos serviços de saúde deve ser acautelado por um suporte legal.

A saúde é um direito fundamental, em conformidade com o disposto no artigo 89 da Constituição da República de Moçambique (CRM), que determina: “Todos os cidadãos têm o direito à assistência médica e sanitária, nos termos da lei, bem como o dever de promover e defender a saúde pública.”

Ao direito fundamental à saúde, é também aplicável o princípio geral dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, que é o da não discriminação, plasmado no artigo 35 da CRM. No que diz respeito aos princípios da igualdade e da não discriminação, determina o seguinte: “Todos os cidadãos são iguais perante a lei, gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres, independentemente da cor, raça, sexo, origem étnica, lugar de nascimento, religião, grau de instrução, posição social, estado civil dos pais, profissão ou opção política.” Outrossim, sobre o princípio da não discriminação, dispõe o artigo 36 da CRM, no concernente ao princípio da igualdade do género, que: “O homem e a mulher são iguais perante a lei em todos os domínios da vida política, económica, social e cultural.”

Com efeito, do ponto de vista legal, o acesso à saúde não deve ser determinado com base em aspectos, elementos, instrumentos que denotam discriminação. A questão da limitação do acesso aos serviços de saúde com base na indumentária do utente viola o princípio da não discriminação.

De acordo com o artigo 56 da CRM, o direito à saúde vincula todas as entidades públicas e privadas, no sentido de que deve ser respeitado e aplicado obrigatoriamente por qualquer uma destas entidades, no quadro da Constituição e das leis, o que significa, neste caso, que o Ministério da Saúde deve respeitar este direito fundamental e aplicá-lo nos termos previstos na CRM sem discriminação.

O mesmo artigo 56 da CRM, nos n.ºs 2 e 3, determina que o direito à saúde pode ser limitado em razão da salvaguarda de outros direitos ou interesses protegidos pela Constituição. No caso vertente, a limitação do direito à saúde com base na indumentária não visa a salvaguarda de outros direitos ou interesses protegidos pela Constituição, pelo que é uma prática ilegal e contrária à CRM.

É importante notar que as disposições da Carta dos Direitos e Deveres do Doente, aprovada pela Resolução 73/2007, de 18 de Dezembro, não dão cobertura legal à prática da proibição do acesso aos serviços de saúde com base na indumentária ou aparência do utente ou doente.

NORMAS DO DIREITO INTERNACIONAL DE PROTECÇÃO DA SAÚDE

O direito à saúde é, indubitavelmente, um direito humano protegido por normas de direito internacional aplicável em Moçambique, das quais: a Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigos 7 e 25); a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (artigos 2 e 16) e a Carta Africana sobre os Valores e Princípios da Função e Administração Pública, ratificada pelo Estado Moçambicano através a Resolução n.º 67/2012, de 28 de Dezembro. Estes instrumentos de protecção de direitos humanos também proíbem a limitação do direito à saúde com base em critérios não prescritos na lei e que não respeitam os princípios da não discriminação e o princípio da igualdade.

Curiosamente, o artigo 16 da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos determina:

  1. Todas as pessoas têm direito ao gozo do melhor estado de saúde física e mental possível.
  2. Os Estados-Partes na presente Carta comprometem-se a tomar as medidas necessárias para proteger a saúde das suas populações e para lhes assegurar assistência médica em caso de doença.

Isso significa que o Estado moçambicano, sendo signatário da Carta Africana, para além das outras medidas a tomar para a protecção da saúde dos cidadãos, deve garantir que a prática da limitação do acesso à saúde com base na indumentária ou aparência do utente seja banida do SNS.

A Carta Africana sobre os Valores e Princípios da Função e Administração Pública, ratificada pelo Estado Moçambicano, tem particular importância por impor determinados comportamentos e princípios que devem ser levados a cabo pela Administração Pública, o que inclui as instituições públicas de saúde, no que diz respeito à prática da não discriminação e obediência aos princípios da legalidade e dos direitos humanos.

NÃO DISCRIMINAÇÃO NO DIREITO INTERNACIONAL

Os serviços, bens e instalações de saúde devem ser fornecidos a todos, sem qualquer discriminação. A não discriminação é um princípio fundamental dos direitos humanos e é crucial para o gozo do direito ao mais alto padrão de saúde possível.

Discriminação significa qualquer distinção, exclusão ou restrição feita com base em vários motivos que tenham o efeito ou o objectivo de prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais. A discriminação está ligada à marginalização de grupos populacionais específicos e, geralmente, está na origem de desigualdades estruturais fundamentais na sociedade. Isto, por sua vez, pode tornar esses grupos mais vulneráveis à pobreza e a problemas de saúde. Não é de surpreender que os grupos tradicionalmente discriminados e marginalizados geralmente tenham uma parcela desproporcional dos problemas de saúde.

A não discriminação e a igualdade implicam ainda que os Estados devem reconhecer e suprir as diferenças e necessidades específicas de grupos que geralmente enfrentam desafios específicos à saúde, como é o caso da indumentária e aparência, sobretudo das mulheres e minorias sexuais[1]. A obrigação de garantir a não discriminação exige que padrões específicos de saúde sejam aplicados a determinados grupos populacionais, tais como as mulheres, crianças ou pessoas com deficiência. Medidas positivas de protecção são particularmente necessárias quando certos grupos de pessoas são continuamente discriminados na prática dos Estados ou por actores do sector privado.

Não há justificativa para a falta de protecção dos membros vulneráveis da sociedade contra a discriminação relacionada aos cuidados de saúde.

Assim, dúvidas não restam de que, à luz desses instrumentos internacionais de protecção dos direitos humanos, a prática de limitação do acesso à saúde com base na indumentário constitui violação dos direitos humanos à saúde.

CONCLUSÃO

O Estado moçambicano, sobretudo através do Ministério da Saúde e das instituições de justiça relevantes, como é o caso do Provedor de Justiça e da Comissão Nacional dos Direitos Humanos, têm a obrigação primária de proteger e promover os direitos humanos. As obrigações de direitos humanos são definidas e garantidas pelo Direito interno e pelos instrumentos internacionais de direitos humanos, criando obrigações vinculativas para o Estado em virtude do ser signatário dos mesmos. É, pois, ao Estado a quem cabe a obrigação primordial de respeitar, proteger e realizar o direito à saúde na perspectiva da não discriminação pela indumentária ao utente dos serviços de saúde.

RECOMENDAÇÕES


[1] Indivíduos com orientação sexual diferente.

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