
Foto: Agência O Globo
No contexto de desenvolvimento de pesquisas em saúde pública, o Observatório Cidadão para Saúde (OCS) levou a cabo um estudo sobre as problemáticas da responsabilização criminal de usuários de drogas ilícitas em Moçambique. No estudo em alusão, tendo-se analisado diversas questões de ordem social e legislativa, concluiu-se que o consumo de drogas ilícitas deve ser visto como um problema de saúde pública, não mais como uma simples questão criminal.
A pesquisa, que se focou na análise e reflexão em torno da Lei nº3/1997 de 13 de Março, referente ao “Tráfico e Consumo de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, Precursores e Preparados ou outras substâncias com efeitos similares”, abrangeu dezassete pessoas privadas da liberdade por consumo de drogas ilícitas, nos Estabelecimentos Penitenciários Preventivos de Maputo (EPPM) e Especial para Mulheres de Maputo (EPEMM), entrevistadas no mês de Abril de 2023.
Uma das principais constatações reside no facto de os entrevistados – usuários de drogas e pessoas associadas ao uso das mesmas em estado de reclusão – serem frequentemente discriminados, violando-se as leis. Por outro lado, observa-se morosidade na tramitação de processos para que estes sejam julgados.
Tendo-se analisado o quadro legal, para se perceber a violação da lei, constatou-se que o artigo 55 prevê pena de prisão até dois anos, seja para o consumidor ocasional assim como para o habitual. No entanto, o juiz pode optar em dispensar o usuário ocasional. A isenção da pena, todavia, pode ser aplicada apenas se o usuário for menor de idade, não reincidente, que assuma o compromisso de não retornar a consumir drogas ilícita e aceite a submissão ao tratamento médico.
Ainda de acordo com o mesmo artigo, quem for encontrado na posse ou adquirindo uma quantia, que excede o consumo médio individual durante três dias de plantas e substâncias, é punido com pena de prisão correspondente a um ano. Se não exceder este limite, e também se não detalhada a quantidade, não há pena.
Apesar da argumentação acima, o artigo é impreciso ao não estabelecer a quantidade a ser considerada média individual para três dias. Ou seja, há limitações para a apuração das quantidades consideráveis.
Por outro lado, o Artigo 34 afirma que “Quem, sem se encontrar autorizado, cultivar a planta <Cannabis Sativa>, vulgarmente conhecida como soruma, será punido com pena de 3 dias a 1 ano de prisão.”
O artigo apresenta ainda uma aparente contradição na legislação, estabelecendo uma pena de 3 dias a 1 ano de prisão para o cultivo, enquanto a lei é mais punitiva em relação ao consumo. Essa discrepância levanta dúvidas sobre a coerência e lógica por detrás das penalidades, já que o cultivo está intrinsecamente ligado à produção, fornecimento e consumo de substâncias ilícitas.
Por outro lado, a lei trata o consumo da droga ilícita como um assunto de política criminal, sem nenhuma referência a esta questão como assunto de saúde pública. A mesma lei não toma em consideração a condição socio-económica da pessoa que usa drogas ilícitas, tendo em conta o impacto que as mesmas exercem sobre este cidadão.
Urge Revisar a Lei Nº3/1997
Tendo em conta as questões arroladas cima, a presente pesquisa recomenda que se considere o consumo de drogas ilícitas como uma questão de saúde pública, através da revisão e regulamentação da Lei nº 3/1997. Assim sendo, é necessário que o Estado seja sensível e tenha disponibilidade para tratar o consumo de droga como um problema de saúde pública, através da replicação de experiências inovadoras por actores estatais e organizações sem fins lucrativos, em Moçambique.
Ainda em relação à lei, observa-se que, quando os usuários de droga ilícita apresentam sintomas de distúrbios de saúde mental, são encaminhadas aos serviços de psiquiatria. Embora seja questionável o internamento de pessoas que usam drogas em hospitais e/ou serviços de psiquiatria, seria necessário analisar-se o tratamento fornecido aos pacientes, questionando-se a eficácia do tratamento para a redução e eliminação dos danos derivados do consumo ou uso de drogas.
Mais do que o internamento em hospitais e serviços de psiquiatria, a pesquisa sugere a criação de serviços públicos intermédios especializados em reabilitação entre os centros de saúde e comunidades. Estes poderiam acompanhar e, possivelmente, reintegrar as pessoas que usam drogas ilícitas nas suas famílias e na comunidade próxima à família.
Porque a prevenção e o combate ao consumo de drogas assume que usuários de droga são de má conduta e criminosos – sem nenhuma abordagem humana e humanizante que possa ajudá-los na redução de danos derivados do consumo de drogas e no processo de reabilitação – o estudo recomenda que se deve rever e regulamentar a Lei no 3/1997 para que a mesma seja específica na definição de tráfico.
Igualmente, a revisão proposta serve para evitar a prisão de pessoas que usam drogas ilícitas, assim como olhar-se para o consumo de droga como problema de saúde publica, e proporcionar uma abordagem institucional de redução de danos, reabilitação e reinserção social das pessoas que usam drogas ilícitas.
Enquanto a Lei no 3/1997 não for revista, de acordo com a pesquisa, todos os actores do sistema de justiça criminal deveriam ser abalizados sobre o quão a lei está descontextualizada e desajustada para o contexto actual. A aplicação das penas alternativas à prisão e das penas não privativas de liberdade deveriam ser monitoradas para a avaliação do seu nível de eficácia.
A pesquisa aponta ainda que os jovens e os grupos mais vulneráveis, do ponto de vista socio-económica, estão mais propensos ao consumo de drogas e sofrem os efeitos da mesma.
Neste contexto, sugere-se que as campanhas de sensibilização nas escolas devem incluir os pais e encarregados de educação, para que sejam auxiliares no controle comportamental dos seus dependentes e garantir acompanhamento familiar contínuo desde a infância, passando pela adolescência.
A pesquisa aponta ainda para a criação de mais oportunidades de emprego e auto-emprego para a camada mais jovem da sociedade, como forma de se afastar os jovens do mundo das drogas através de actividades conscientes, produtivas e rentáveis.
A pesquisa completa está disponível em: www.observatoriodesaude.org